ENTENDENDO A ENDOMETRIOSE?
Por Dr Alexandre Nishimura, coloprotoctologista, colaborador e proctor do WHR no Brasil
A doença feminina do século
A endometriose é uma doença crônica caracterizada por implantes endometriais fora do útero e está associada a dor pélvica crônica e subfertilidade. É um distúrbio, relativamente, comum que afeta mais de 176 milhões de mulheres em todo o mundo. Ocorre em 6 a 10% de todas as mulheres em idade reprodutiva e pode afetar, seriamente, a qualidade de vida. A extensão da endometriose varia amplamente e pode envolver outros órgãos além dos genitais internos femininos. Isto induz não só às dores menstruais e infertilidade, mas as lesões endometrióticas também podem se infiltrar, progressivamente, e levar a retrações fibróticas que podem invadir outros órgãos como ureter, bexiga e intestino. Felizmente, a grande maioria dos casos tem uma extensão limitada, embora os dados epidemiológicos não sejam claros nas publicações. Isto se deve, principalmente, ao fato dos centros de referência apresentarem, certamente, uma superestimação ligada ao viés pré-seletivo. Por exemplo, a incidência de endometriose intestinal na população em geral é relatada entre 3 e 5%, enquanto nos centros de referência, onde os casos graves são tratados com mais frequência, chega a 59%.
MANIFESTAÇÕES DA ENDOMETRIOSE INTESTINAL
Da calmaria à tormenta:
Os sintomas podem ser diversos e surgir logo na adolescência, sendo que os mais comuns são a cólica menstrual intensa (dismenorréia) e dores na região pélvica. Justamente por não ser um assunto muito conhecido entre as mulheres e, infelizmente, entre alguns médicos, muitas mulheres sofrem por anos com sintomas da endometriose, sem o devido diagnóstico e tratamento especializado. A apresentação clínica da endometriose profunda intestinal varia amplamente, desde sintomas graves, como a infertilidade, dismenorréia, dispareunia (dor na relação sexual), dor pélvica crônica, disquezia (dor ao evacuar), tenesmo (sensação de esvaziamento fecal incompleto ou desejo constante de evacuar), diarréia cíclica e constipação, até quadros completamente assintomáticos. Além disso, sintomas inespecíficos com sobreposição considerável com outras condições clínicas podem atrasar o diagnóstico e, portanto, o tratamento. Há uma crença de que é ‘normal’ sentir cólicas intensas ou dificuldades ao evacuar no período menstrual, e isso afasta muitas mulheres de se consultar com um profissional especializado, por isto, recomendo que se encoraje pela busca da melhora da qualidade de vida e investigue os sintomas com um especialista no assunto, pois o tratamento precoce faz toda a diferença.
DIAGNOSTICANDO A ENDOMETRIOSE INTESTINAL
Qual o caminho para um diagnóstico eficaz?
Para algumas pacientes, a avaliação ginecológica pode não ser o suficiente para o diagnóstico exato do problema, deste modo, sendo necessário complementar a investigação com exames de imagem, além da avaliação de um Coloproctologista, em casos suspeitos de acometimento intestinal e para exclusão de outras doenças intestinais, como por exemplo o câncer colorretal. Por isto, em alguns casos a colonoscopia, embora tenha pouco valor diagnóstico para endometriose intestinal, deverá ser realizada para prevenção de câncer de intestino e investigação de patologias como as doenças inflamatórias intestinais (Doença de Crohn e Retocolite Ulcerativa), por exemplo. Logo, os exames mais indicados para o diagnóstico e mapeamento da endometriose profunda intestinal são a ultrassonografia transvaginal com preparo intestinal e a ressonância magnética de pelve com preparo intestinal.
COMO PROCEDER PARA UM TRATAMENTO EFICAZ
A melhor forma é ressecar o intestino
Há um consenso geral para adotar uma abordagem cirúrgica multidisciplinar em centros de referência quando é diagnosticada endometriose infiltrativa profunda grave para reduzir a dor pélvica crônica que é associada à doença e para melhorar a fertilidade. A história natural da doença e o seu curso clínico nunca foram bem definidos. Certamente, o tratamento cirúrgico deve ser proposto às mulheres com endometriose moderada a grave de acordo com a apresentação clínica e o desejo de fertilidade da paciente.
O tratamento clínico para melhorar os sintomas e retardar a progressão da doença pode ser uma opção da terapia, especialmente quando o desejo da gravidez não é um objetivo da paciente e quando não ocorrem sintomas ou complicações graves. No entanto já foi relatada a oclusão intestinal progressiva devido a lesões de endometriose, mesmo durante a amenorréia induzida por progestina. Lembrando que o tratamento laparoscópico multidisciplinar é considerado o padrão para tratamento para lesões suboclusivas, deste modo, não devendo insistir em tratamentos clínicos nestes casos, pelo risco aumentado de obstruções intestinais, que poderiam levar a complicações como perfurações intestinais ou distensões abdominais severas. A abordagem cirúrgica radical ou conservadora deve ser ponderada em cada caso de acordo com a apresentação clínica. O risco de recorrência relacionado à cirurgia conservadora deve ser equilibrado com maiores riscos de complicações intestinais pós-operatórias e disfunções de médio e longo prazo relacionadas à abordagem radical. Outro aspecto importante são os cuidados pré-operatórios. Historicamente, pensava-se que as vantagens do preparo intestinal antes da cirurgia colorretal eletiva garantiam uma eliminação profilática de bactérias, diminuíam o contato persistente entre as fezes e a anastomose e facilitavam a manipulação de um cólon vazio durante a laparoscopia. Apesar da tendência geral de evitar o preparo intestinal pré-operatório, os dados relatados são bastante contrastantes. Protocolos de recuperação acelerada para cirurgias intestinais foram propostos nos últimos anos em diferentes contextos (cirurgia aberta vs laparoscopia) e a grande maioria dos relatos foram em casos oncológicos. Pacientes oncológicos podem ter fatores de risco adicionais, como idade, comorbidade, extensão da doença (estágio), obstrução intestinal sobreposta e anemia que, certamente, podem afetar os resultados. A cirurgia colorretal para endometriose intestinal representa uma situação diferente, pois por definição os pacientes estão em idade reprodutiva e, geralmente, sem comorbidades, cirurgicamente, relevantes. Até o momento, tivemos um único estudo abordando a aplicação de um protocolo de recuperação acelerada em mulheres jovens com esta doença benigna, entretanto, ele teve sérias limitações ligadas à natureza retrospectiva do estudo e falta de informações importantes sobre a preparação intestinal, necessidade de ileostomia, taxa de reoperação e bem-estar dos pacientes depois da cirurgia. Além disso, os autores compararam grupos que foram submetidos a diferentes procedimentos cirúrgicos (cirurgia conservadora vs cirurgia com ressecção intestinal) que têm, sem dúvida, diferentes cursos pós-operatórios. Nos casos de endometrioses intestinais, existe o acometimento do reto ou do cólon sigmóide em quase 90% dos casos. A melhor abordagem cirúrgica para o tratamento das endometrioses intestinais é planejada previamente ao ato cirúrgico, guiado pelos exames de imagens, entretanto, é no intra-operatório em que a adequada conduta cirúrgica será decidida, de acordo com o real estado da doença. Entretanto, numa regra geral, as lesões menores do que 3 cm e que acometem apenas a camada mais externa da parede intestinal (serosa) podem ser tratadas através de uma raspagem (chamada de “shaving") de toda a lesão intestinal. Logo, se essa lesão já invade as camadas mais profundas da parede intestinal e apresenta-se com acometimento circunferencial < 30% a realização de uma ressecção discóide (ressecção de parte da parede intestinal, no formato de disco através do uso de um grampeador mecânico circular) pode ser uma opção acertada. Infiltração até a camada mucosa e acometimento de 50% da circunferência intestinal têm sido sugerida como indicação para ressecção segmentar do intestino. Além dos riscos gerais (sangramento, infecção, lesões diretas em órgãos) e disfunções intestinais e/ou vesicais, o vazamento da anastomose intestinal é uma das complicações mais graves. A ressecção segmentar aparece como a abordagem mais radical e geralmente é escolhido para lesões de endometriose profunda com diâmetro superior a 3 cm ou doença multifocal. Comparado com o “shaving” intestinal, a ressecção segmentar e a ressecção discóide têm sido associadas a um risco maior de desenvolvimento de fístula retovaginal e vazamento intestinal. Após os primeiros relatos de ressecção colorretal para tratamento da endometriose há mais de um século, a técnica poupadora de nervos, evitando possíveis danos à parte do plexo hipogástrico inferior por dissecção e lateralização de feixes nervosos foi descrita pela primeira vez em uma grande série de pacientes com câncer colorretal por Heald em 1982 e foi, posteriormente, adotada para o tratamento de endometriose profunda intestinal com ressecção segmentar. Esta técnica envolve a ressecção limitada de um segmento intestinal com preservação de todas as estruturas adjacentes, principalmente do plexo nervoso pélvico autônomo e da vascularização principal. Deste modo, podemos esperar que a preservação dessas estruturas contribua para a cicatrização otimizada de feridas e, portanto, reduza as taxas de complicações graves, como vazamento de anastomose e formação de uma fístula intestinal. Além disso, alguns autores defendem a preservação adicional do suprimento arterial retal, preservando a artéria mesentérica inferior e artérias retais, sugerindo possível benefício quanto à perfusão da anastomose. No entanto, a relação entre essas variações de técnicas de ressecção segmentar e os resultados cirúrgicos subsequentes não foram avaliados sistematicamente até o momento. Entretanto, o que é importante ressaltar é a condição benigna da doença endometriose e, por isto, há segurança de se ressecar os segmentos intestinais preservando-se os ramos arteriais principais, com dissecções e ligaduras apenas dos ramos terminais dos vasos, que ficam próximos aos segmentos intestinais a serem ressecados. Sendo que isso promove um menor risco relativo de vazamento da anastomose e melhores taxas de cicatrização, reduzindo assim os riscos de uma confecção de ostomia.
OSTOMIA NAS ENDOMULHERES
Será que sempre é necessária em casos de ressecções intestinais?
A ileostomia temporária às vezes é feita para evitar vazamento anastomótico que leva ao abscesso pélvico e subseqüente a peritonite, que pode aumentar o risco de fístulas ureterais, aparecimento de aderências e sepse. Entretanto, pelo grande receio da sua confecção, algumas alternativas foram desenvolvidas para poupar as endomulheres desta condição, como por exemplo a “ileostomia fantasma”, que é uma técnica específica que foi descrita, pela primeira vez, em 2010, a qual oferece uma opção fácil e segura para prevenir vazamento anastomótico com máxima preservação da qualidade de vida da paciente. Em caso de vazamento anastomótico, a “ileostomia fantasma” (ou virtual) é, simplesmente, convertida, sob anestesia local, em uma alça ileostomia (real) extraindo a alça isolada através de uma abertura adequada da parede abdominal (normalmente, no local de punção para passagem do trocater cirúrgico, na fossa ilíaca direita). Em mulheres com acometimento mucoso do intestino e da vagina pela endometriose, há maior risco de fístula retovaginal após ressecções concomitantes de reto e vagina. Assim, para anastomose colorretal baixa, o uso de ileostomia protetora temporal pode ser recomendado para prevenir essas complicações, mas acarreta riscos relacionados ao estoma como hérnia, retração, desidratação, prolapso e necrose. Devemos lembrar de que cada vez mais com a compreensão da evolução da doença, do seu aspecto benigno, do melhor preparo pré-operatório, do uso de novas tecnologias em cirurgia e com o desenvolvimento das habilidades cirúrgicas das equipes multidisciplinares, a necessidade de confecção de uma ostomia vem se tornando desprezível, com trabalhos demonstrando índices de fístulas anastomóticas e necessdiade de confecção de ostomias em apenas 3,2% dos casos em que a boa preservação nervosa e arterial é empregada. Deste modo, de um modo geral, é uma rotina não confeccionarmos uma ostomia nas cirurgias primárias para tratamento de endometrioses profundas intestinais.
MENSAGENS FINAIS
O que esperar de um tratamento especializado?
O tratamento especializado em endometrioses profundas é amplo, com equipes multidisciplinares envolvendo ginecologista, coloproctologista, urologista, especialista em dor, fisioterapeuta, nutricionista, enfermeira, psicóloga e educador físico. Além disto requer o uso cada vez maior de tecnologias para as abordagens cirúrgicas especializadas, como equipamentos de videolaparoscopia, plataformas robóticas, pinças de energia avançadas, grampeadores mecânicos, monitores anestésicos, meias e dispositivos compressivos, mesas cirúrgicas modernas, recursos para avaliação da viabilidade dos tecidos em tempo real entre tantos outros avanços da medicina, inclusive dos que ainda estão próximos a se consolidarem na rotina do cirurgião moderno, como por exemplo o uso da inteligência artificial e da realidade aumentada. Entretanto, contudo, a paciente, que é a nossa principal razão de toda essa preocupação por resultados e inovações, deve estar envolvida em todas as tomadas de decisões pré-operatórias. Além disso, o tratamento deve ser individualizado, levando-se em consideração a sua sintomatologia, impacto da doença e efeitos do tratamento na qualidade de vida da endomulher. Lembrando de que sempre em que a cirurgia for indicada, deve-se fazer a ressecção completa da doença, e não apenas “cauterizar foquinhos”, pois isto, pode promover a persistência dos sintomas e manutenção da doença. E este é um fator relevante para que as endomulheres busquem por tratamentos especializados em centros que possuam uma abordagem multidisciplinar capacitada na atenção às endomulheres, incluindo o recurso das cirurgias minimamente invasivas, através da videolaparoscopia ou da cirurgia robótica.
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